sexta-feira, 24 de agosto de 2012

ESCRIVÃO




Jerri  Almeida

“Escravidão! Quando se pronuncia esse nome, o coração sente frio, porque vê à sua frente o egoísmo e o orgulho” Allan Kardec – Revista Espírita/ Fevereiro de 1862.

A escravidão fez parte das sociedades desde a mais remota Antiguidade. De acordo com as especificidades de cada povo ou sociedade, os escravos poderiam ser prisioneiros de guerras ou mesmo pessoas que, por não poderem pagar alguma dívida, eram conduzidas àquela condição. Havia, também, o fato de pais que vendiam os próprios filhos como escravos.
Na Grécia, o escravismo desenvolveu-se de forma muito significativa. Raras eram as atividades produtivas onde os escravos não eram empregados, tanto no meio urbano como no meio rural. Estima-se, por exemplo, que Aristóteles em suas pesquisas sobre as formas de alimentação e reprodução dos animais, contasse com mais de mil escravos, a sua disposição,  trazendo-lhe animais para suas experiências.
O processo escravista foi, sem dúvida, uma grande violência contra a dignidade humana, através da subjugação moral, pela força ou por qualquer outro meio de coerção servil. Evidentemente, devemos compreender esse processo de dominação no âmbito de povos embrutecidos espiritualmente, atrelados a ideia de riqueza em face da exploração violenta do semelhante.
No Mundo Antigo a instituição da escravidão era algo natural no seio das sociedades e, não raras vezes, recebia a própria legitimação das estruturas religiosas. Na Bíblia há diversas passagens sobre a questão da escravidão justificada.
Paulo, em carta aos Efésios afirma:

“Vós, servos, obedecei aos vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo.” [Efésio 6:5]

Os Efésios eram os moradores de Efeso, cidade grega no território da Lídia, no Litoral Oeste da Ásia Menor. Essa cidade era um grande centro comercial e religioso e já havia sido visitada por Paulo anteriormente em suas viagens. É curioso, no entanto, observar que Paulo destaca o “senhor segundo a carne”, justamente, para diferenciar do “Senhor” como sinônimo de Deus. Deixando claro que o servo ou escravo deveria obedecer aos seus  “donos”. Isso evidentemente, em nosso ver, não invalida o admirável trabalho de Paulo na divulgação do Cristianismo nascente, tão somente, mostra a face de um homem situado em seu tempo, sujeito ao equívocos e às influências naturais de seu meio.
Em carta aos Colossenses reafirma:

“Vós, servos, obedecei em tudo a vossos senhores segundo a carne, não servindo só na aparência, como para agradar aos homens, mas em simplicidade de coração, temendo a Deus.” [Colossenses, 3:22]

Aqui temos a reprodução do Deus temeroso, punitivo e cruel que não se coaduna com o Deus de amor  e bondade ensinado por Jesus.  Um Deus que justifica a dominação do homem sobre o homem jamais fez parte dos ensinamentos do Cristo. Aqui, parece-nos que sobressai a influência do Deus apresentado por Moisés ao povo hebreu. E por falar em Moisés, vejamos o que ele nos fala sobre a escravidão:

“Escravos e escravas para vos servires, podereis adquiri-los entre os povos circunvizinhos. Poderes também comprá-los dentre os filhos dos estrangeiros, que peregrinam entre vós e dentre suas famílias, nascidos e crescidos na vossa terra, e serão vossa propriedade.” [Levítico 25:44-45]

No Êxodo, lê-se:

“Se comprares um servo hebreu, seis anos servirá; mas ao sétimo sairá forro, de graça. Se entrou só com o seu corpo, só com o seu corpo sairá; se ele era homem casado, sairá sua mulher com ele. Se seu senhor lhe houver dado uma mulher, e ela lhe houver dado filhos ou filhas, a mulher e seus filhos serão de seu senhor, e ele sairá só com seu corpo.” [Êxodo 21:2-6]

Há uma série de outras referências na Bíblia sobre a escravidão. Sem nos alastrarmos em mais citações, desejamos refletir sobre o caráter legislativo e, portanto, humano, dessas referências.
Poderia causar estranheza para alguém, que textos bíblicos fossem coniventes com a escravidão! Ora, um exame consciencioso das passagens bíblicas  demonstra que as religiões estiveram, praticamente, sempre vinculadas ao poder político, servido como justificativa moral para  salvaguardar determinados interesses, muitas vezes, obscuros e tendenciosos.
Os textos bíblicos, impregnados da cultura hebraica, tentavam naturalizar a escravidão como uma prática comum – até porque os hebreus haviam sido escravizados no Egito – e, como bem se percebe, cristalizada no cerne daqueles povo antigos.  Na verdade, a escravidão só começou a ser vista como uma prática “vergonhosa para a humanidade” no século XVIII.
Mas a Bíblia deve ser analisada sempre à luz da razão e do bom-senso, isto é, torna-se necessário diferenciarmos o que fazia parte da cultura e do contexto histórico da época, daquilo que realmente tem valor como verdades universais.
O Antigo Testamento, por exemplo, está cheio de representações simbólicas, contradições e mesmo práticas ancestrais, já superadas para os nossos dias. Não obstante, a Doutrina Espírita retira ou resguarda a essência do Velho Testamento consubstanciada no Decálogo. Este sim, de caráter universal, mantém-se válido nos dias atuais, personificando valores divinos e permanentes como: a vida, a justiça, a honradez, o amor, o respeito...
Jesus considerou a necessidade do Amor como sentimento capaz de unir os homens e de fazê-los crescer espiritualmente. Contrapondo-se aos regimes totalitários e opressores, ensinava, entre outras coisas, que a escravidão de qualquer forma e sob qualquer pretexto, é terrível violência contra a criatura humana. O Seu Evangelho é um hino de exaltação à prática dos valores nobres  e dignificantes, como medida possível para os homens encontrarem a paz.
No final da Idade Média, todavia, a Igreja Católica aceitou e promulgou a escravidão como uma prática institucional que  considerava justa, necessária ou inevitável. As escrituras não a condenavam e esse fato facilitou aos cristãos fazerem uso dela para dominarem, principalmente, os africanos, e pô-los a serviço do enriquecimento das monarquias Ibéricas.  Com São Tomás de Aquino e as interpretações sobre o pensamento de Aristóteles, admitiu-se a escravidão como derivada de uma suposta inferioridade moral e/ou espiritual dos escravizados.
Essa postura adotada é um sofisma perigoso, justamente, por tentar justificar o erro mediante aparentes motivos “justos”, que desrespeitam a integridade moral do próprio ser humano. É o “cristão” ignorando o Cristo!
Allan Kardec, retomando a questão em O Livro dos Espíritos obtém a efusiva assertiva dos espíritos:

“È contrária à lei de Deus toda sujeição absoluta de um homem a outro homem. A escravidão é um abuso da força. Desaparece com o progresso como gradativamente desaparecerão todos os abusos.” [Questão 829]

A questão 830 da referida Obra, é bastante conclusiva diante do exposto até aqui e, portanto, dispensa maiores comentários. Vejamo-la:
“- Quando a escravidão faz parte dos costumes de um povo, são censuráveis os que dela aproveitam, embora só o façam conformando-se com um uso que lhes parece natural?
R. O mal é sempre o mal e não há sofisma que faça se torne boa uma ação má. A responsabilidade, porém, do mal é relativa aos meios de que o homem disponha para compreendê-lo. Aquele que tira proveito da lei da escravidão é sempre culpado de violação da lei da Natureza. Mas, aí, como em tudo, a culpabilidade é relativa. Tendo-se a escravidão introduzido nos costumes de certos povos, possível se tornou que, de boa-fé, o homem se aproveitasse dela como de uma coisa que lhe parecia natural. Entretanto, desde que, mais desenvolvida e, sobretudo, esclarecida pelas luzes do Cristianismo, sua razão lhe mostrou que o escravo era um seu igual perante Deus, nenhuma desculpa mais ele tem.”

Com esse breve artigo, pretendemos alertar para a necessidade de uma leitura racional e contextualizada das passagens bíblicas, no sentido de percebemos a essência dos ensinamentos morais, muitas vezes, em contraposição com as próprias práticas cristalizadas da época. Jesus, é bom lembrar, jamais se contradisse, o que fê-lo, evidentemente, um homem incomparável, jamais compactuando com a injustiça e a exploração humana.

Referências Bibliográficas

PINSKY, Jaime. História da América Através de Textos. 5ª ed. São Paulo: Contexto,1994.
MELO, Mário Cavalcante de. Da Bíblia aos Nossos Dias. Curitiba: Livraria da Federação Espírita do Paraná, 1954.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. 68º ed. Brasília: FEB, 1987.
A BIBLIA SAGRADA. Trad. João Ferreira de Almeida. 26ª impressão, Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1972.

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