À Sombra do Golpe: crise da democracia, implantação
da ditadura no Brasil e os anos rebeldes
Jerri Almeida
Historiador. Especialista em Diálogos entre História e Literatura do RS.
A vexatória renúncia de Jânio Quadros à presidência da república, em
agosto de 1961, instaura a denominada “crise da legalidade”, um período
turbulento e delicado pela não aceitação das forças armadas à assunção
do vice-presidente, João Goulart (Jango), ao poder. Os desdobramentos
desse fato colocariam em xeque a incipiente e frágil democracia brasileira,
culminando em 31 de março de 1964 com o golpe que implantou, por vinte
e um anos, a ditadura militar no Brasil.
Jango, um homem enigmático, herdeiro do trabalhismo de Getúlio Vargas,
desde fins de 1961, defendia a necessidade das “reformas de base” que
atingiria a questão agrária, a universidade, a área tributária e eleitoral.
O projeto de Jango sofreu forte resistência dos setores conservadores da
sociedade, sendo – por fim – derrotado no Congresso. Se por um lado, havia
por parte desses setores elitistas uma forte resistência à tradição
do Estado Populista, personificado agora na figura de Jango, por outro, vários
setores mobilizavam-se, como é o caso das Ligas Camponesas e da UNE
(União Nacional dos Estudantes) visando imprimir, radicalmente, essas
reformas no campo e na cidade.
Em época de Guerra Fria, sob o impacto ainda recente da Revolução Cubana
(1959), a elite brasileira via com temeridade o “fantasma do comunismo” que
rondava o Brasil sob a égide das políticas sociais de João Goulart. Nesse
contexto, as Forças Armadas estavam divididas em dois grupos: os que
defendiam como necessárias as transformações na sociedade brasileira, e
os que se opunham radicalmente ao governo Jango, acusando-o de ligações
com o comunismo. O clima se acirrou, ainda mais, com o grande comício da
Central do Brasil, em 13 março de 1964, no antigo Estado da Guanabara,
quando, diante de uma imensa concentração de 150 mil pessoas, Goulart
]anunciou uma série de medidas radicais como a reforma agrária e a nacionalização
das refinarias de petróleo, o que significava uma atitude que passava por
cima do Congresso, explorando-se os poderes do executivo.
Entretanto, no caso de protesto do Congresso, Jango tencionava recorrer,
novamente, ao “plebiscito” para demonstrar o apoio popular para suas reformas.
Essa nova fase de Jango, inegavelmente, iniciou com o comício da sexta-feira
13 de março. Em seu discurso, o presidente enfatizou a necessidade da
reforma agrária e de uma nova Constituição que melhorasse a ordem sócio-
econômica do Brasil. Todavia, Jango jamais organizara realmente uma base
de apoio popular consistente para as reformas almejadas. Para o historiador
Thomas Skidmore, a aproximação de Goulart da esquerda radical, da qual
fazia parte Brizola, fez com que ele perdesse o apoio dos militares.
Aquilo que para os setores de esquerda radical, era um governo democrático,
que pretendia mexer na política fundiária e diminuir o fosso das desigualdades
sociais da sociedade brasileira, era, para os conservadores, proprietário de
terras, políticos direitistas, Igreja Católica, etc, o prenúncio da “desordem
comunista” que deveria ser barrada. A reação inicial desses setores
conservadores foi a realização em São Paulo , em 19 de março de 1964,
]da “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”. Defendia-se o
anticomunismo, a moral e a família. Governadores como Adhemar de
Barros (SP) e Carlos Lacerda (GB) chegaram, inclusive, apoiar abertamente
a rebelião contra o Governo Federal.
O 13 de março solidificou a oposição a Jango. As forças políticas do Centro
migraram para a Direita Radical, fortalecendo-se o discurso de que o Presidente
havia rejeitado a democracia. A oficialidade militar passou a olhar para Jango
como um “subversivo” e, logo, caíram no ataque. De alguma forma revivia-se
o ano de 1954 quando Getulio era forçado a abandonar o poder, fato que
culminou em seu suicídio.
Preparava-se, sob o comando do General Castelo Branco, o golpe, não
contra Jango, mas contra a incipiente democracia brasileira.
Um conjunto de articulações, no interior das Forças Armadas, tomou vulto
em 20 de março de 64. Um grupo mais intelectualizado, de oficiais, sob o
comando do General Castelo Branco, preparava-se para o golpe sob o pretexto
de que o papel histórico das Forças Armadas era o de defender a ordem
constitucional do país. Com o apoio do Governador de Minas Gerais, Magalhães
] Pinto, o general Olympio Mourão Filho pôs suas tropas a marcharem para
o Rio de Janeiro, detonando, assim, o golpe militar contra o governo João
Goulart, em 31 de março de 1964.
Praticamente, a única iniciativa de resistência contra o golpe veio de Leonel
Brizola, do PTB do Rio Grande do Sul. Todavia, Jango, que, para alguns
historiadores, era portador de uma personalidade conciliatória, encarou com
realismo a deposição, o que gerou, sabidamente, uma indisposição com seu
cunhado, pois Brizola o estimulava a resistir na defesa de seu mandato.
A movimentação das tropas deslocou-se de Minas Gerais e São Paulo em
direção ao Rio de Janeiro o qual era sede do 1º. Exército, do qual se
esperava uma possível reação na defesa de João Goulart. O General
Âncora, comandante do 1º. Exército ao telefonar para o palácio presidencial
em busca de instruções, soube que o presidente havia se evadido rumo a Porto
Alegre, deixando o recado de que não desejava, sob nenhuma hipótese, o
choque entre militares.
Ao chegar em Porto Alegre , Jango ainda ouviu o apelo desesperado de
Brizola, informando que o General Ladário Teles, comandante do 3º. Exército,
estava ao seu lado oferecendo resistência, muito embora, o próprio governador
do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, que temia a guerra civil, já ter fugido
para o interior do Estado. Brizola chegou a chorar para que seu cunhado
resistisse, mas foi em vão. Jango também fugiu para o interior do RS, e depois
exilou-se no Uruguai, seguido, logo depois, por Brizola.
O golpe de 64 negou ao povo brasileiro o direito de amadurecer a sua
experiência democrática, essencial para o aperfeiçoamento das instituições
e dos poderes, além de bloquear, por 21 anos, a construção de um país
com mais justiça social. Não era a primeira vez que as forças armadas intervinham
para obstaculizar os conflitos da política brasileira. Em 1954 algumas ações já
haviam sido feitas. Mas em 1964, pela primeira vez, o exército estava unido
contra o populismo, o qual: “pretendia perturbar a democracia brasileira.”
A esquerda brasileira, na órbita de seu radicalismo, ficou perplexa, e perdida,
diante do golpe. É bom que se diga que João Goulart foi deposto por uma
revolta militar e não por uma elite política oposicionista. O próprio Congresso
Nacional não havia endossado nenhum pedido de impeachment, pois sabiam
não haver votos suficientes. Seja como for, o Brasil, a partir da implementação
do regime ditatorial, mergulhou numa infame névoa que
obscureceu, sistematicamente, a liberdade de expressão e de participação
política da população. Mais, os governos que se iniciavam souberam
destroçar completamente o sistema político formado durante o período democrático.
A poderosa máquina repressiva, instalada, principalmente, a partir da
decretação do Ato Institucional no. 5, fez com que o “combate à
subversão” justificasse a total liberdade de ação de órgãos policiais que
espalhavam terror sobre a sociedade, prendendo, torturando e assassinando
supostos comunistas. As mortes, nos porões do DOI-CODI, eram encobertas
por versões falsas de “atropelamento” ou “morte por acidente de trabalho”.
A arbitrariedade do poder, pelo governo ditatorial, se fez presente na
censura aos meios de comunicação, nos festivais de música, no teatro, nas
escolas e nos cinemas. Sem condições de produzir, uma significativa
parcela de artistas e intelectuais brasileiros viram-se constrangidos ao exílio.
Era a fase do: “Brasil: ame-o, ou deixe-o”. Na verdade, “amar o Brasil” era
aceitar as arbitrariedades do próprio regime.
O golpe de 31 de março de 1964 castrou, e por isso deve ser
periodicamente relembrado, o valor inalienável da democracia e da participação
efetiva das pessoas na vida de seu país.
Chegando ao poder, os militares realizaram profunda alteração
constitucional, promulgaram o Ato Institucional nº 1 — que cassou
mandatos, suspendeu a imunidade parlamentar e direitos políticos — e
promoveram a eleição, pelo Congresso Nacional, de um novo presidente,
o marechal Humberto de Alencar Castelo Branco, que governou até 1967.
Os partidos políticos foram abolidos e instalado o bipartidarismo.
No campo econômico foi definido um modelo baseado no
binômio desenvolvimento/segurança. O planejamento centralizado contribuiu
para a estatização da economia, desempenhando o Estado atividades
de gerenciamento da produção. Como ocorreu em outros países, a crise
mundial da década de 1970 agravou o problema econômico brasileiro,
acentuando a concentração de renda e os problemas das populações mais
pobres.
Ato Institucional nº 5 ou AI-5, decreto governamental de 13 de dezembro
de 1968, assinado pelo presidente Artur da Costa e Silva, suspendendo
garantias constitucionais e fortalecendo a repressão aos que se
opunham ao Movimento Militar de 1964:
Através desse Ato, o presidente podia:
a) fechar o Congresso Nacional por tempo indeterminado toda vez que
deputados e senadores “atrapalhassem”, com suas críticas e votações, os
projetos do Governo militar;
b) suspender direitos políticos. Se um deputado ou senador fizesse
“oposição exagerada”, o presidente poderia “cassa-lo”;
c) Suspender direitos legais. A partir do AI-5, tornou-se comum a polícia invadir
a casa das pessoas sem autorização judicial. O preso político era levado a
um local desconhecido e não podia se comunicar com seus familiares..
O recrudescimento do movimento estudantil contra o governo, bem como
o início de atividades terroristas, em 1968, foram invocados como motivos
para colocar em recesso o Congresso Nacional, as Assembléias Legislativas
e as Câmaras Municipais, e realizar novas cassações de mandatos e direitos
políticos, além de aposentar funcionários públicos, sobretudo
professores universitários, tidos como contrários ao regime, atingindo, entre
outros, o ex-governador Carlos Lacerda. Concedeu ao presidente poder para
governar por meio de decretos e estabeleceu a censura.
A tortura foi indiscriminadamente aplicada no Brasil. Pessoas suspeitas
de serem “subversivas ao sistema”, isto é, de estarem contra o governo militar,
eram torturadas pelos órgãos de repressão criados pela ditadura. No caso da
tortura, não se tratava apenas de produzir, no corpo da vítima, uma dor que a
fizesse confessar possíveis “planos” contra o regime. A tortura também
possuía um componente emocional, assim crianças eram torturadas diante
de seus pais, mulheres diante do marido, marido na frente da esposa, etc.
Muitos morreram ou estão desaparecidos até hoje.
O ato vigorou até 1979, quando foi revogado no processo de abertura
política impulsionada no governo de Ernesto Geisel.
O fim da ditadura militar no Brasil pode ser explicado através de vários motivos.
Entre eles, podemos citar:
a) a grave crise econômica do país, fruto dos enormes gastos com a construção
de obras faraônicas como a ponte Rio-Niterói e a rodovia Transsamazônica.
A crise do petróleo nos anos 70 colaborou para o agravamento dessa crise.
A inflação aumentado e a política econômica do ministro Delfim Neto não
lograram reverter a situação complexa do país.
b) o conflito entre as forças internas do próprio regime militar. Os órgãos
criados para reprimir, prender e torturar os “inimigos políticos do sistema”,
com o tempo, passaram a gozar de muitos poderes, criando por conta própria
uma autonomia muito grande em relação ao governo. Não foram poucos os
conflitos entre delegados do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social)
e o comando do exército pela captura dos mencionados inimigos políticos.
Tal crise se agravou ainda mais quando passou a existir o chamado “esquadrão
da morte”, formado por policiais civis que partiram para o extermínio de “bandidos”.
c) as pressões dos trabalhadores. A crise econômica por que passava o
país fez aumentar o número de desemprego e o arrocho (perda) salarial. Na
região do A,B,C paulista, região de grande concentração de indústrias metalúrgicas,
os sindicados passaram a organizar grandes manifestações e greves por
melhores condições de trabalho e de valorização salarial.
Diante de um quadro cercado de crises, os militares resolvem de forma
“lenta e gradual” devolver o poder político do Brasil à sociedade civil.
Anos 60: os anos rebeldes
A conjuntura política dos anos 60 deu novo rumo a cultura de massas. Os militares
que se estabeleceram no poder passaram a praticar a censura aos
meios de comunicação, pois temiam que a influência do rádio e da televisão
sobre a cultura popular pudesse ameaçar a "Segurança Nacional". Órgãos de
controle dos meios de comunicação foram instalados nas rádios, jornais,
revistas e redes de televisão para cuidar das informações e das notícias que
seriam passadas para a população brasileira. Era a censura.
Nos outros meios de difusão cultural não foi diferente. Teatro, música, cinema
também foram alvos da ditadura militar. Artistas, compositores, autores de
peças teatrais foram perseguidos pelos órgãos de censura.
A produção de cultura passava pela arrogância dos militares que viam em
tudo uma ameaça comunista. Por trás de uma letra de música, de um diálogo
numa peça teatral ou num filme escondia-se o "perigo vermelho". De fato a
rebeldia da juventude, dos intelectuais e artistas brasileiros engajados na luta
contra a ditadura dava motivos para os órgãos de repressão agirem contra os
meios de comunicação e de produção culturais. Esses meios, aliás,
tornaram-se instrumentos da propaganda do regime militar.
Mas, mesmo assim, a arte conseguia encontrar brechas nos muros
erguidos pela ditadura e, até, confrontar-se com ela. No cenário artístico-
cultural duas alternativas se apresentaram: o protesto contra o regime e as
denúncias e críticas aos hábitos da sociedade brasileira.
No teatro, por exemplo, o grupo Opinião em 1965 montou a peça Liberdade
Liberdade. Em 1966 Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come. O Teatro
de Arena encenava Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes. O TUCA
(teatros universitários) também montava peças de protesto.
Na música Geraldo Vandré, Edu Lobo, Chico Buarque compunham letras de
protesto contra o regime militar. De outro lado surgia a Jovem Guarda, com
músicas que falavam de beijos, amor, sexo, numa linha de rebeldia contra
costumes da época. No final dos anos 60 aparecia o Tropicalismo uma
tendência artística que busca uma nova linguagem, criticando valores
estabelecidos, concebendo a melodia e as letras de uma maneira diferente
da Jovem Guardam, da música de protesto, da bossa nova, embora
incorporasse elementos destes e de outros estilos e influências (Jimmy
Hendrix, Beatles). Chegou a atingir cinema e teatro, não se limitando à música.
Foram destaques da tropicália - Caetano Veloso, Gilberto Gil, os Mutantes,
Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade em sua peça Macunaíma.
Tivemos também expressões da contracultura aqui no Brasil nos idos anos 60.
No cinema, na literatura, no jornalismo alternativo buscava-se
enfocar o homossexualismo, as minorias, as drogas, etc. Também conhecido
como pós-tropicalismo teve seus destaques em nomes como Torquato Neto,
Waly Sailormoon, em jornais como o Pasquim, Bondinho e Flor do Mal.
Os anos 60 significaram muito em nossa história. Primeiro pela própria ditadura
militar que através da repressão, dos inúmeros atos de tortura, da censura,
da propaganda acabou marcando as gerações que vivenciaram o terror
daqueles anos. A juventude, principalmente, reagiu ou se conformou aos
atos autoritários. A imaginação e a criatividade não foram caladas pelos
instrumentos de repressão, mas muitos morreram pelas causas que defenderam.
Os menos famosos, os desaparecidos políticos, os prisioneiros, aqueles que
foram torturados, compõem uma legião que permanece até hoje no anonimato.
É uma parcela de nossa história que não se apagará facilmente. As heranças
desse passado recente com as intensas transformações estão ainda vivas no
Brasil do início do século XXI.
Referências Bibliográficas
BARROS, Edgar Luiz de. O Brasil de 1945 a 1964. São Paulo: Contexto, 1994.
BRANDÃO, Antonio Carlos. DUARTE, Milton Fernandes. Movimentos
culturais de juventude. 2ª. Ed. São Paulo: Moderna, 2004.
HABERT, Nadine. A Década de 70: Apogeu e crise da ditadura militar
brasileira. São Paulo: Ática, 2003.
NAPOLITANO, Marcos. O regime militar brasileiro: 1964-1985. 4ª. Ed.
São Paulo: Atual, 1998.
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo (1030-1964). 9ª. Ed.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
Nenhum comentário:
Postar um comentário