sábado, 29 de junho de 2013

O desencarne de Chico Xavier

(…) No Mundo Espiritual, nosso irmão Lilito Chaves veio ao nosso encontro e anunciou o que, desde algum tempo, aguardávamos com expectativa: a desencarnação do médium Francisco Cândido Xavier, o nosso estimado Chico. O acontecimento nos impunha rápidas mudanças de planos, improvisamos uma excursão à Crosta para saudar aquele que, após cumprir com êxito a sua missão, retornava à Pátria de origem.

Assim, sem maiores delongas, Odilon, Paulino e eu, juntando-nos a uma plêiade de companheiros uberabenses desencarnados, rumamos para Uberaba no começo da noite daquele domingo, dia 30 de junho. A caminho, impressionava-nos o número de grupos espirituais, procedentes de localidades diversas, do Brasil e do Exterior, que se movimentavam com a mesma finalidade.

Todos estávamos profundamente emocionados e, mais comovidos ficamos quando, estacionando nas vizinhanças do “Grupo Espírita da Prece”, onde estava sendo realizado o velório, com o corpo exposto à visitação pública, observamos uma faixa de luz resplandecente, que, pairando sobre a humilde casa de trabalho do médium, a ligava às Esferas Superiores, às quais não tínhamos acesso.

Conversando conosco, Odilon observou:

— Embora, evidentemente, já desligado do corpo, nosso Chico, em espírito, ainda não se ausentou da atmosfera terrestre; os Benfeitores Espirituais que, durante 75 anos, com ele serviram à Causa do Evangelho, estarão, com certeza, à espera de ordens superiores para conduzi-lo a Região Mais Alta…

De nossa parte, permaneçamos em oração, buscando reter conosco as lições deste raro momento.

Aproximando-nos quanto possível, notamos a formação de duas filas imensas, constituídas de irmãos encarnados e desencarnados, que reverenciavam o companheiro recém-liberto do jugo opressor da matéria: eram espíritos, no corpo e fora dele, extremamente gratos a tudo que haviam recebido de suas mãos, a vida inteira dedicadas à Caridade, na mais fiel vivência do “amai-vos uns aos outros”. Mães e pais que, por ele haviam sido consolados em suas dores; filhos e filhas que puderam reatar o diálogo com os genitores saudosos, escrevendo-lhes comoventes páginas do Outro Lado da Vida; famílias desvalidas com as quais repartira o pão; doentes que confortara agonizantes em seus leitos; religiosos de todas as crenças que, respeitosos, lhe agradeciam o esforço sobre-humano em prol da fé na imortalidade da alma…

Não registramos nas imediações, é bom que se diga, um só espírito que ousasse se aproximar com intenções infelizes. Os pensamentos de gratidão e as preces que lhe eram endereçadas, formavam um halo de luz protetor que tudo iluminava num raio de cinco quilômetros; porém essa luz amarelo-brilhante contrastava com a faixa de luz azulínea que se perdia entre as estrelas no firmamento.

A cena era grandiosa demais para ser descrita e desafiaria a inspiração do mais exímio gênio da pintura que tentasse retratá-la.

Uma música suave, cujos acordes eu desconhecia, ecoava entre nós, sem que pudéssemos identificar de onde provinha, como se invisível coral de vozes infantis, volitando no espaço, tivesse sido treinado para aquela hora.

Espíritos mais simples que passavam rente comentavam:

— “Este é um dos últimos… Não sabemos quando a Terra será beneficiada novamente por um espírito de tal envergadura”; “Este, de fato, procurava viver o que pregava” “Quem nos valerá agora?”;

“Durante muitos anos, ele matou a fome da minha família… Lembro-me de que, certa vez, desesperado, com a ideia de suicídio na cabeça, eu o procurei e a minha vida mudou”; “Os seus livros me inspiraram a ser o que fui, livrando-me de uma existência medíocre”; “Quando minha avó morreu, foi ele quem pagou seu enterro, pois, à época, éramos totalmente desprovidos de recursos”; “Fundei minha casa espírita sob a orientação de Chico Xavier, que recebeu para mim uma mensagem de incentivo e de apoio”; “Comigo, foi diferente: eu estava doente, desenganado pela Medicina, ele me receitou um remédio de Homeopatia e fiquei bom”…

Os caravaneiros não cessavam de chegar, todos portando flâmulas e faixas com dizeres luminosos; creio sinceramente que, em nosso Plano, jamais houve uma recepção semelhante a um espírito que tivesse deixado o corpo, após finda a sua tarefa no mundo; com exceção do Cristo e de um ou outro luminar da Espiritualidade, ninguém houvera feito jus ao aparato espiritual que se organizara em torno do desenlace de Chico Xavier.

Com dificuldade, logrando adentrar o recinto do “Grupo Espírita da Prece”, reparamos que uma comissão de nobres espíritos, dispostos em semicírculo, todos trajando vestes luminescentes, permanecia, quanto nós mesmos, em expectativa. Odilon sussurrou-me ao ouvido:

— Inácio, estas são as entidades que trabalharam com ele na chamada “Coleção de André Luiz”; são os Mentores das obras que o nosso André reportou para o mundo, no desdobramento do Pentateuco Kardequiano:

Clarêncio, Aniceto, Calderaro, Áulus e tantos outros…

— E aqueles que estão imediatamente atrás? — indaguei.

— São alguns representantes da família do médium e amigos fiéis de longa data.

— E onde estão Emmanuel, nosso Dr. Bezerra de Menezes e Eurípedes Barsanulfo? Porventura, ainda não chegaram?…

— Devem estar — respondeu — cuidando da organização…

Ao lado do seu corpo inerte, nosso Chico, segundo a visão que tive, me parecia uma criança ressonando, tranquila, no colo de um anjo transfigurado em mulher, fazendo-me recordar, de imediato, a imagem de “Pietà”, a famosa escultura de Michelangelo.

— Quem é ela? — perguntei.

— Trata-se de D. Cidália, a sua segunda mãe…

— E D. Maria João de Deus?…

— Ao que estou informado — esclareceu Odilon —, encontra-se reencarnada no seio da própria família.

— E seu pai, o Sr. João Cândido?

— Está em processo de reencarnação, seguindo os passos da primeira esposa.

Adiantando-se, nosso Lilito indagou:

— Odilon, na sua opinião, por que o Chico está parecendo uma criança?

— Ele necessita se refazer, pois o seu desgaste, como não ignoramos, foi muito grande, mormente nos
últimos anos da vida física; nosso Chico carece de se desligar completamente. ..

— Perderá, no entanto, a consciência de si?

— É evidente que não. O seu verdadeiro despertar acontecerá gradativamente, à medida que se recupere da luta sem tréguas que travou… Aliás, a Espiritualidade Superior, nos últimos três anos, vinha trabalhando para que a sua transição ocorresse sem traumas, tanto para a imensa família espírita, que o venera, quanto para ele próprio.

Inúmeras caravanas e representações continuavam chegando, formando extensas filas, que se postavam paralelas às filas organizadas pelos nossos irmãos encarnados, a comparecerem ao velório para render a Chico Xavier merecidas homenagens.

Dezenas e dezenas de jovens formavam grupos especiais que vinham recebê-lo no limiar da Nova Vida, gratos por ter sido ele o seu instrumento de consolo aos familiares na Terra, quando se viram compelidos à desencarnação…

A tarefa de Chico Xavier — explicou Odilon, emocionado — não tem fronteiras; raras vezes, a Espiritualidade conseguiu tamanho êxito no campo do intercâmbio mediúnico… No entanto a força que o sustentava nas dificuldades vinha de Cima, pois, caso contrário, teria sucumbido às pressões daqueles que, encarnados e desencarnados, se opõem ao Evangelho. Chico, por assim dizer, ocultou-se espiritualmente em um corpo franzino e deu início ao seu trabalho, sem que praticamente ninguém lhe desse crédito; quando as trevas o perceberam, já havia atravessado a faixa dos vinte de idade e em franco labor, tendo pronto o “Parnaso de Além-Túmulo”, a obra inicial de sua profícua e excelente atividade psicográfica…

Estávamos todos profundamente emocionados. A multidão, dos Dois Lados da Vida, não parava de crescer e, assim como no Plano Físico os policiais cuidavam da organização, na Dimensão Espiritual em que nos situávamos, Entidades diversas haviam sido encarregadas de disciplinar a intensa movimentação, sem que nenhum de nós se sentisse encorajado a reclamar qualquer privilégio com o propósito de uma maior aproximação. Quase todos nos conservávamos em atitude de profundo silêncio e de reverência.

Os grupos de espíritos que haviam, ao longo de seus 75 anos de labor, trabalhado com o médium, com exceção, evidentemente, daqueles que já haviam reencarnado, se faziam representar pelos seus maiores expoentes no campo da Poesia e da Literatura.

Próximas a Cidália, em cujos braços Chico Xavier descansava, à espera de que o cortejo fúnebre
partisse conduzindo os seus restos mortais, notei a presença de algumas entidades femininas que eu não soube identificar.

— Quem são? — perguntei a Odilon, que era um dos poucos dentre nós com plena liberdade de movimentar-se.

— Aquelas quatro primeiras, são as nossas irmãs Meimei, Maria Dolores, Scheilla e Auta de Souza; as demais são corações maternos agradecidos que, em uma ou outra oportunidade, se expressaram pela mediunidade psicográfica do nosso Chico.

— Quem estará na coordenação do evento? — insisti, ansioso por maiores esclarecimentos.

— O Dr. Bezerra de Menezes e Emmanuel, assessorados diretamente por José Xavier — respondeu.

— José Xavier?…

— Sim, o irmão do médium, que está conduzindo um grupo de espíritos amigos de Pedro Leopoldo e região; quando Chico se transferiu para a cidade de Uberaba, em 1959, os seus vínculos afetivos com a sua terra natal não se desfizeram; os espíritas que constituíram o Centro Espírita “Luiz Gonzaga” sempre se sentiram membros de uma única família.

— E aquele casal mais próximo que, de quando a quando, dialoga com Cidália?

— José Hermínio e D. Carmem Perácio; foram eles que iniciaram Chico Xavier no conhecimento da Doutrina Espírita, doando-lhe exemplares de “O Livro dos Espíritos” e de “O Evangelho Segundo o Espiritismo”…

Pude perceber, com clareza, que os filamentos perispirituais que uniam o espírito recém-desencarnado ao corpo enrijecido, se enfraqueciam gradualmente; sem dúvida, o médium, assim que se lhe cerraram os olhos físicos, desprendeu-se da forma material, no entanto, devido à necessidade de permanecer durante 48 horas exposto à visitação pública, conforme era seu desejo, exigia que o corpo, de certa forma, continuasse a receber suplementos de princípio vital, evitando-se os constrangimentos da cadaverização. Embora aconchegado aos braços daquela que havia sido na Terra a sua segunda mãe e grande benfeitora, o espírito Chico guardava relativa consciência de tudo…

As expectativas de quase todos, porém, se concentravam sobre aquela faixa de luz azulínea, a qual, à medida que se abeirava a hora do sepultamento, se intensificava; tínhamos a impressão de que aquele caminho iluminado era a passagem para uma Dimensão Desconhecida, para a qual, com certeza, Chico Xavier haveria de ser conduzido.

Dentro de poucos instantes, o silêncio se fez naturalmente maior e um venerável senhor, ladeado por Irmão José e Herculano Pires, este um dos vultos mais importantes da Doutrina nos últimos tempos, assomou discreta tribuna e começou a falar.

— Quem é? Perguntei, à meia-voz…

— Léon Denis — respondeu-me Odilon com um sussurro.

— “Meus irmãos — disse o inesquecível discípulo de Allan Kardec — eis que aqui nos encontramos reunidos, para receber de volta ao nosso convívio, aquele que, uma vez mais, cumpriu exemplarmente a missão que lhe foi confiada pelo Senhor de nossas vidas. Elevemos ao Infinito os nossos pensamentos de gratidão e de reconhecimento, porquanto sabemos das dificuldades que o espírito que moureja na carne enfrenta para desbravar caminhos à Verdade; o nosso amigo e mestre que, após longa e desgastante peleja, agora retorna à Pátria Espiritual, se constituiu num verdadeiro exemplo, não somente para os nossos irmãos encarnados, mas igualmente para os que necessitamos renascer no orbe e, por vezes, nos sentimos desencorajados… (…) Um ciclo se encerra, mas outro deve começar (…)”

Passados alguns instantes da alocução proferida por Léon Denis, perfumada aragem começou a soprar, balsamizando o ambiente. De onde será que provinha aquele suave perfume que, aos poucos, se intensificava, impregnando-nos o corpo espiritual? Tínhamos a impressão de que, caindo de Esferas Resplandecentes, aquele orvalho celeste, constituído de diminutos flocos luminosos, antecedia o momento em que o espírito Chico Xavier seria conduzido à ignota região da Vida Sem Fim.

Quando o fenômeno a que tento me referir se fez mais evidente, algumas explosões começaram a ocorrer na extensa faixa de luz azulínea que, agora, ia mudando de tonalidade, como se um arco-íris se estivesse materializando diante dos nossos olhos.

Gradativamente, cinco entidades foram se fazendo visíveis para nós, tangibilizando-se no pequeno espaço que me parecia reproduzir produzir a abençoada estrebaria em Belém…

Os cinco espíritos, que não posso lhes dizer que tenham assumido forma propriamente humana, foram sendo identificados por nós: eram Bezerra de Menezes, Emmanuel, Eurípedes Barsanulfo, Veneranda e Celina, a excelsa mensageira de Maria de Nazaré.

Diante da estupenda visão, todos sentimos ímpetos de nos ajoelharmos; muitos, efetivamente, se ajoelharam, com os olhos banhados de lágrimas.

Bezerra de Menezes, Emmanuel e Eurípedes Barsanulfo estavam, por assim dizer, mais humanizados, no entanto Veneranda e, especialmente, Celina, nos pareciam dois anjos alados, falenas divinas que se tivessem metamorfoseado apenas para que pudéssemos vê-las… Eu tinha a impressão de estar participando de um sonho que transcendesse a mais fértil imaginação.

Adiantando-se aos demais companheiros, Veneranda, que o tempo todo pairava no ar, começou a orar com sentimento que a palavra não consegue traduzir:

— “Senhor da Vida — exorou, sensibilizando-nos profundamente — aqui estamos para receber, de volta ao nosso convívio, um dos Vossos servidores mais fiéis que, após quase um século de lutas acerbas pela causa do Vosso Evangelho na Terra, regressa ao Grande Lar, com a consciência do dever cumprido.

Que as Vossas bênçãos envolvam o espírito naturalmente exaurido, restituindo-lhe as energias que se consumiram de todo por amor do Vosso Nome entre os homens, nossos irmãos! Que do seu extraordinário esforço não se perca, Mestre, uma única gota de suor, das que se misturaram às lágrimas anônimas vertidas por ele no testemunho da Fé.

Que o trabalho de sua profícua existência no corpo físico continue a ser prodigiosa sementeira para as gerações do porvir, apontando o Caminho para quantos anseiam por seguir os Vossos passos…

Senhor, os que tão-somente agora, depois de séculos e século de sombras, nos convencemos da Vossa magnanimidade, vos agradecemos por não terdes consentido que o nosso irmão sucumbisse diante das provas e, em nada, se afastasse da trajetória que lhe traçaste no mundo — sabemos que, nos momentos mais difíceis, sem que nós mesmos pudéssemos perceber, a Vossa mão o sustentava para que não tombasse sob o peso da cruz que lhe pusestes aos ombros… Nós vos louvamos por terdes realizado nele a obra consagrada do Vosso amor, que, um dia, redimirá a Humanidade inteira. E que, agora, ainda unidos ao espírito companheiro que soube transformar-se em exemplo de renúncia e de sacrifício, de desprendimento e de abnegação, possamos dar sequência à tarefa que iniciastes há dois mil anos, da edificação do Reino de Deus sobre a face da Terra!…

Que a claridade sublime das Altas Esferas não nos faça ignorar os vales de sombras dos quais procedemos e nos quais acendestes, para sempre, a Vossa Luz… Que não nos seja lícito o descanso, enquanto o orbe planetário, onde tantas vezes expiamos as nossas faltas, se transfigure em estrela de real grandeza, a fulgir na glória dos mundos redimidos.

Abençoai, Senhor, os nossos propósitos que são os Vossos e que, hoje e sempre, possamos exaltar-Vos o Nome através de nossas vidas!…”

Terminando de orar, Veneranda e Celina se aproximaram de Cidália, que continuava a aconchegar em seu materno coração o espírito que foi nosso Chico, o qual, de quando a quando, estampava cândido sorriso, como se fosse uma criança participando de um sonho bom do qual jamais ousasse acordar.

O silêncio reinante era de tal ordem, que, aos nossos ouvidos, a voz inarticulada da Natureza nos parecia uma sinfonia; de minha parte, confesso-lhes que eu nunca tinha ouvido a música dos astros e nem podia imaginar que o próprio silêncio tivesse voz.

A faixa de luz azulínea que se transformara num arco-íris ainda se mostrava mais viva, e todos permanecíamos na expectativa do que não sabíamos pudesse acontecer.

Direcionando os sentidos, quis ver, naquela hora, como os preparativos para o féretro estavam desenvolvendo-se no Plano Físico e, justamente, quando começou a ser entoada a canção “Nossa Senhora” e os nossos irmãos começaram a movimentar-se, dando início ao cortejo, uma Luz indescritível, descendo por aquele leque iluminado que ligava a Terra ao Infinito — a faixa de luz que ali se instalara logo após ter sido armado o velório no “Grupo Espírita da Prece” —, uma Luz que, para mim, era muito superior à luz do próprio Sol e que me acionava a memória para a lembrança da visão que Paulo teve do Cristo, às portas de Damasco, repetiu com indefinível ternura:

— “Vinde a mim, todos os que andais em sofrimento e vos achais carregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim, que sou manso e humilde de coração, e achareis descanso para as vossas almas. Porque o meu jugo é suave e o meu fardo é leve”.

Aquela Extraordinária Visão, que sequer povoava os meus sonhos mais remotos de espírito devedor, estendeu dois braços humanos reluzentes e, quando notei que o Chico em espírito se transferia dos braços de Cidália para aqueles Braços que o atraíam, digo-lhes que, desde quando fui beneficiado com o laurel da razão, não tenho recordação de jamais ter chorado tanto…

Aquela Luz, que se humanizava parcialmente para que pudéssemos vê-la, estreitou Chico Xavier ao peito e depositou-lhe um ósculo santo na fronte e, em seguida, partiu, levando-o consigo, despedindo-se com inesquecível sorriso dos que continuavam presos ao abismo, sentenciados pelo tribunal da consciência culpada.

Foi Odilon que, depois de muito tempo, conseguiu falar, comentando conosco:

— Eu sempre que lia as páginas do Velho Testamento, ficava intrigado e colocava em questão a narrativa de que o profeta Elias fora conduzido ao céu por “um carro de fogo”… Agora sei que não se tratava de força de expressão ou algo semelhante. (…)

Um grande vazio se fez após e, gradativamente, a faixa de luz foi se recolhendo de baixo para cima, à medida em que o cortejo celestial se retirava.

A praça em que nos havíamos reunido já se encontrava praticamente vazia; diversos grupos, procedentes de várias regiões da Espiritualidade, haviam partido e, agora, os curiosos e desocupados de além-túmulo se aproximavam, como que para vasculhar os espólios do concorrido velório…

Contrastando com a luz do corpo espiritual de eminentes entidades, esses outros nossos irmãos se mostravam opacos em seu novo veículo de expressão, dando-me a impressão de que, embora desencarnados, ainda não tinham logrado completa emancipação; muitos caminhavam sem qualquer desenvoltura, qual se fossem doentes com dificuldade para mudar o passo…

Identificando- nos na condição de adeptos do Espiritismo e amigos de Chico Xavier, começamos a ser abordados por aquelas entidades infelizes que, aos meus olhos, se assemelhavam a sobreviventes onde houvesse sido travada intensa batalha. A grande maioria exibia as vestes em farrapos e, além da obscuridade espiritual à qual já me referi, deixavam exalar de si quase insuportável odor…

— Por favor, auxiliem-nos! — disse-nos um deles, adiantando-se aos demais — Estamos convencidos de que, realmente, o mal não compensa… O que vimos acontecer hoje, aqui…

Olhando-me, significativamente, Odilon comentou:

— Quantas bênçãos a vida e a suposta morte de um verdadeiro homem de bem pode espalhar! Quantos não estarão sendo motivados à renovação íntima, ante o episódio da desencarnação do nosso Chico!…
Ele que, no corpo, descerrou caminhos para tanta gente, ao deixar a vestimenta física, prossegue orientando com os seus exemplos os que se desnortearam além da morte. Faz-me recordar o que disse Jesus, no capítulo 12, versículo 24, das anotações de João: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, produz muito fruto”…

(Esta descrição foi realizada pelo Espírito Inácio Ferreira, e está presente no livro “Na Próxima Dimensão”, psicografado pelo médium Carlos Alberto Baccelli.)

segunda-feira, 24 de junho de 2013

FAMÍLIA E VIDA CONJUGAL FELIZ


Larissa Camacho Carvalho[1]
Vinícius Lima Lousada[2]



[1] Historiadora, Doutoranda em Educação. E-mail: camachocarvalho@yahoo.com.br.
[2] Pedagogo, Doutorando em Educação. E-mail: vlousada@gmail.com.


A construção social da família

            Ao longo dos anos em que a humanidade aperfeiçoou-se, no processo de evolução ditado pela Lei Divina do Progresso, a constituição da família foi umas das mais significativas instituições formadas pelos homens. Inicialmente, quando mulheres e homens da era paleolítica agrupavam-se em bandos garantindo sua defesa pessoal e, respeitando a Lei de Preservação, multiplicavam-se através da procriação, pouco raciocinavam sobre suas ligações com os indivíduos do grupo. A união era útil, respeitava as Leis Divinas, o instinto de sobrevivência, sem, no entanto, centrar-se nos sentimentos elevados da abnegação, da fraternidade, da caridade, do amor ao próximo.
            O desenvolvimento da inteligência no homem, aliado ao das instituições por ele formadas criaram a necessidade de instituírem-se laços diferenciados entre os indivíduos e as uniões responsáveis pela procriação ganharam um estatuto distinto. Este estatuto não foi somente direcionado para o casal que procriava, mas estendia-se a todos os descendentes deste par, reunidos todos na mesma casa matriarcal ou patriarcal, dependendo da cultura que foi sendo construída em cada sociedade.
            Esses laços diferenciados exigiam, como compromisso dos indivíduos que constituíam esses pequenos núcleos, reciprocidade em todos os aspetos da vida, lealdade, protecionismo, cuidado, defesa, deferência e como consequência do progresso moral inevitável, sentimentos mais elevados de cuidado, carinho, amor. Este último desenvolvendo-se, intensivamente, entre os sujeitos com papéis de mães e filhos, depois, também, entre pais e filhos, irmãos, o casal e assim por diante.
            No entanto, durante muito tempo assistimos essa instituição ser manipulada por indivíduos, com grande progresso intelectual, mas pouquíssimo desenvolvimento moral e espiritual, como moeda de troca, de barganha de cargos sociais ou títulos nobiliárquico por dinheiro ou riquezas torpes de todo tipo, desconsiderando, esses espíritos adoecidos e adormecidos das Leis Divinas, os sentimentos elevados já conquistados pelos homens com a contribuição dessa nobre e inspirada construção social.
            Nomeamos essa instituição de família, que antes de ser uma construção social, faz parte do plano de Deus para que as criaturas na Terra tenham um auxílio valioso em seu inevitável progresso moral.
            Na questão 775 d'O Livro dos Espíritos, Kardec – conhecendo a ignorância humana e percebendo que a família, na Terra, embora com enorme potencial edificador, passou e ainda passa por abalos que desestabilizam sua redentora missão – questiona aos benfeitores espirituais “qual seria, para a sociedade, o resultado do relaxamento dos laços de família”, ao que os espíritos respondem que seria “uma recrudescência do egoísmo”. De vital importância essa questão, pois considerando que o egoísmo é a chaga da nossa sociedade, conforme questão 913 do mesmo O Livro dos Espíritos, nossa ferida aberta enquanto grupo social, se o relaxamento dos laços de família intensificará o egoísmo na Terra isto significa, em contrapartida, que para desenvolvermos o altruísmo, o amor, os sentimentos nobilitantes que nos conduzirão ao progresso moral anelado, temos que fortificar os laços de família na nossa sociedade.
            A resposta dos espíritos também esclarece que a instituição família é o bendito instrumento de Deus para que possamos vencer o causador de todas as desditas humanas que é o egoísmo que nutrimos e que nos afasta das bençãos Divinas ao nos alijar dos sentimentos de fraternidade, solidariedade, altruísmo e amor que somente a convivência com o próximo pode nos oferecer.
            Na família aprendemos a compartilhar com abnegação, porque nutrimos afeto por aqueles que compartilham nosso dia-a-dia, aprendemos a compreender o outro, porque conhecemos suas lutas passadas e presentes, sabemos seus sonhos de futuro, felicitamo-nos com suas conquistas e enternecemo-nos com seus incentivos para com nossas lutas. Na família aprendemos a repartir, dividir, mas também multiplicar sonhos, participar da felicidade alheia, fruir da companhia doce de quem amamos e com quem vamos intensificando esse sentimento Divino do Amor. É na família que vamos construir as bases do Amor Universal que nos lembra Jesus quando diz que um dia seremos um só rebanho e haverá um só Pastor.
            Mas a convivência em família não é algo que possamos adjetivar de fácil. Há muitos percalços, muitas dificuldades, muitos desentendimentos e muito a transformar em nós mesmos para conseguirmos manter relações saudáveis em família. Deparamo-nos, no lar, com parentes muito diferentes de nós. Se somos organizados, por vezes defrontamos um irmão desleixado que não organiza seu próprio espaço íntimo. Convivemos com uma mãe super-protetora, com um pai controlador. Mas o amor nos faz aprender a conviver bem com cada personalidade que comunga do nosso mesmo lar.
            Assim é que aprendemos a conviver, por exemplo, com um colega do escritório que é tão desorganizado quanto nosso irmão, ou com o chefe que é controlador a maneira de nosso pai e assim por diante. Enfim, todos os desafios da vida familiar são eminentemente educativos ao Espírito imortal, vocacionado ao progresso cuja a convivência na micro-sociedade que é a família contribui sobremaneira, em todas as funções que venha a ocupar o indivíduo, seja como pai, mãe, filho, tia, avô, etc. Todas essas funções na unidade familiar trazem consigo aprendizagens muito significativas ao nosso amadurecimento espiritual e nos cabe vivê-las com sabedoria, ou seja, aproveitando cada lição que tenhamos a oportunidade de vivenciar
            O Amor em Família engendra o Amor Universal. O Amor em Família vai aniquilando a carga egoística da nossa sociedade. O Amor em Família contribui, poderosamente, para o progresso individual e para o progresso de toda a humanidade. Assim é que necessitamos empenharmo-nos em defender a instituição familiar nos tempos que se apresentam ao nosso trabalho, pois que se ela configura-se construída socialmente, com certeza o plano inspirador pertence ao Pai Maior que pede nosso auxílio para protegê-la, santificá-la e concretizar seu objetivo superior: a instauração do Amor Universal entre os Homens.

Vida conjugal

            Lembra-nos o Benfeitor Espiritual Camilo[1] que todos trazemos necessidades educativas para esse mundo e carecemos, no campo das vivências afetivas, de uma complementação psíquica e emocional que nos impulsiona na busca do encontro de uma alma cuja afinidade espiritual favoreça essa permuta de energias e nos preencha essa lacuna psíquica. Não se trata do mito das “metades eternas” desmitificado por Allan Kardec sem equívoco e, nem tampouco, da tese romântica das almas gêmeas.
            Simplesmente, somos seres transcendentes portadores de uma porção de aprendizados indispensáveis ao nosso paulatino progresso espiritual. Na multidão de Espíritos reencarnados na Terra, são vários os que são portadores de uma configuração de aprendizados comuns que lhes são oportunos, bem como, com uma certa identidade no que se refere à trajetória espiritual e desenvolvimento moral e intelectual, nas suas mais diversas gradações e pelas leis da sintonia, nos encontramos nos caminhos terrestres e, a partir do sentimento de simpatia recíproca desperta-se à comunhão afetiva, ou ainda, pela afinidade dos próprios limites espirituais, vamos ver uniões nascerem entre seres que se fazem instrumento de progresso doloroso ou tropeço, um do outro, em simbioses psíquicas perturbadoras.
            Noutros casos, que não podemos ignorar, percebemos almas irmanadas nos propósitos de renovação e amor reencontrarem-se na Terra, tendo em vista a realização dos ideais enobrecidos no campo do amor, do casamento e da família, e esses casos não são tão raros como, de forma pessimista, muita gente imagina. Esses realizam muito bem o que recomenda o Espírito Bernard Palissy, conforme a anotação kardeciana em a Revista Espírita: “Uni-vos, pois, não apenas pelo amor, mas para o bem que podeis fazer a dois.”[2]
            Cabe ao casal, nesse caso, cumprir com dedicação o programa reencarnatório estabelecido na vida espírita, antes do renascimento, junto de seus Guias Espirituais, objetivando a concretização da tarefa delineada para a sua espiritualização e para o seu contributo, por menor que se faça, ao progresso da família humana.
            Tendo em vista orientar os cônjuges para o êxito da vida conjugal, ao analisar os ângulos espirituais da família, o Espírito Camilo declara que  “O essencial que os indivíduos que se lançam na formação de uma nova família, assumissem compromisso de com o conhecimento de si mesmos.” [3]
            O conhecimento de si mesmo que cada indivíduo deve cultivar, para que jamais transfira ao outro a responsabilidade de suas andanças e o respeito ao projeto de auto-realização do outro, a fim de que o casamento não se institua numa relação asfixiante da outra alma ou numa masmorra de desamor.
            O autoconhecimento é recurso sobejamente conhecido pelos espiritistas, entretanto, para que atenda o seu desiderato feliz é fundamental que o apliquemos cotidianamente, tal como recomenda Santo Agostinho em O Livro dos Espírito, fazendo um balanço problematizador de nosso cotidiano, verificando as aprendizagens conquistadas e as experiências equivocadas que merecem correção de rumo, em função de querermos jornadear conscientemente num rumo crescente para Deus.
            Quando não exercitamos o autoconhecimento, podemos deixar-nos subjugar pelo ego e seus mecanismos de fuga. Segundo Novaes[4] o ego é “a representação do Espírito no mundo externo. Ele é, de um lado, a síntese momentânea da personalidade integral, do outro, uma função que permite a ligação da consciência com os conteúdos conscientes.” Enfim, no delineamento da psique elaborado por Jung, o ego tem um lugar central no consciente, nada obstante, a sua incompletude ante o ser integral, ocupa-se da questão da manutenção da identidade do indivíduo, de sua personalidade atual e de mediação entre o campo da consciência e inconsciente, devendo obedecer a regulação do eu profundo.
            Entre os mecanismos de fuga do ego, o eminente psiquiatra Alírio de Cerqueira Filho, destaca o de projeção. Nesse caso, é comum que o indivíduo ainda não identificado mais profundamente consigo mesmo passe a querer responsabilizar os outros em relação aos seus insucessos e frustrações. Nesse caso, diz-nos que “A única forma de se libertar da projeção é interromper esse mecanismo de transferência, aceitando os seus defeitos e responsabilizando-se pelos seus erros e acertos e, com isso, tornar-se uma pessoa melhor.”[5]
            Vejamos que para a saúde espiritual da relação conjugal, tanto quanto, para a dos cônjuges, como individualidades extracorpóreas conectados ao corpo físico pelos mecanismos da reencarnação e vocacionados à plenitude, é indispensável o exercício continuado do autoconhecimento para que, superando-se os ditames do ego infantil, a autorealização promova o bem-estar e o autoamor que deságua no amor ao outro, com serenidade e contentamento, na convivência conjugal.
            O casamento se fundamenta no amor dos seres que se unem que, para ser amor, não pode ser edificado na anulação da identidade do outro e nem na perseguição egotista de uma felicidade aparente, calcada fruição de conquistas individualistas sem consideração para com a partilha da existência com o outro. Precisamos encontrar convergência nos projetos pessoais e parceria na edificação positiva do lar cujos pilares são os Espíritos que o formam ligados pelo mais genuíno amor.
           

O amor no lar, novamente

            A relação conjugal estabelecida no autoconhecimento gera o respeito profundo ao outro que se estende, quando chegarem, aos filhos. É na exemplificação do entendimento dos próprios limites que alguém consegue desenvolver a indulgência com as alheias imperfeições e no autoperdão que aprendemos a arte de perdoar nossos seres queridos.
            De forma equilibrada, quem ama a si mesmo, que não é a mesma coisa que egolatria, aprende a amar o outro e o seu livre-arbítrio, sem aquele ímpeto de domínio da vontade alheia, comum a Espíritos de mentalidade estreita e apóia, sem medo, os projetos edificantes elegidos pela alma com a qual está a partilhar essa vida.
            Na lealdade, probidade e consciência plena das responsabilidades sedimenta-se o amor familiar que irá acolher seus hóspedes, os filhos de Deus que temporariamente recebe por rebentos seus cuja missão é fazê-los exitosos sobre si mesmos, ante as suas programáticas espirituais. Adentrando o lar o amor ilumina a todos, instituindo um clima de respeito profundo, boa vontade e presença positiva nas lutas comuns.
            O amor em casa, tal como o preconizado por Jesus de Nazaré, é o que dá rumo seguro à família como educandário sublime cujo altruísmo é a lição fundamental. O amor é o caminho do êxito da instituição familiar, jamais ultrapassada, constituindo-se, inclusive, na terapêutica mais excelente para a solução de intrincados conflitos, oriundos da incompreensão de hoje ou dos desenganos morais perpetrados no passado e condicionante de nossas ações na atualidade, pedindo a educação pessoal para o bem de todos os partícipes do campo doméstico.

Para pensar:

            “A união e a afeição que existem entre pessoas parentes são um índice da simpatia anterior que as aproximou. Daí vem que, falando-se de alguém cujo caráter, gostos e pendores nenhuma semelhança apresentam com os dos seus parentes mais próximos, se costuma dizer que ela não é da família. Dizendo-se isso, enuncia-se uma verdade mais profunda do que se supõe. Deus permite que, nas famílias, ocorram essas encarnações de Espíritos antipáticos ou estranhos, com o duplo objetivo de servir de prova para uns e, para outros, de meio de progresso.”[6]


[1] TEIXEIRA, J. Raul. Desafios da Vida Familiar. Pelo Espírito Camilo. 2.ed. Niterói, RJ: Fráter Livros Espíritas, 2003, p. 46.
[2] KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos. Ano Primeiro – 1858. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2004, p. 513.
[3] TEIXEIRA, J. Raul. Nos passos da vida terrestre. Pelo Espírito Camilo. Niterói, RJ: Fráter Livros Espíritas, 2005, p.
[4] NOVAES, Adenauer. Psicologia do Espírito. 2. Ed. Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2003, p. 99.
[5] CERQUEIRA FILHO, Alírio de. Saúde espiritual. Santo André, SP: Editora Bezerra de Menezes, 2005, p. 75-76.
[6] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 120. Ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2002, p. 108.

Artigo publicado originalmente na revista A Reencarnação. número 440, e autorizado pelos autores para postagem nesse blog.

sexta-feira, 21 de junho de 2013

SOBRE A EDUCAÇÃO 1 (Ver nota no final do texto)

Discurso feito pelo jovem Hippolyte-Léon Denizard Rival (1804-1869)2

“A EDUCAÇÃO moral depende de uma multidão de causas que parecem minuciosas e que no entanto têm uma grande influência, principalmente numa idade em que o caráter, semelhante à cera mole, é suscetível de receber todas as impressões. Frequentemente um vício se manifesta numa criança sem que possamos conhecer-lhe a causa; então jogamos a falta sobre a natureza, enquanto ela provém, talvez, de uma impressão que recebeu, e que se poderia ter evitado com mais precaução. 
Na maioria de nossas instituições, as punições que são empregadas, quase sempre muito severas, quase sempre infligidas com parcialidade e num momento de impaciência, irritam a criança; ela se revolta, se enraivece contra a autoridade, e é assim que lhe damos ocasião de ser mentirosa, colérica, desrespeitosa, insubordinada, etc.: ocasiões que poderiam ter sido evitadas. Devemos nos surpreender ao ver os jovens experimentarem desgosto por seus estudos, quando nas classes tudo respira tristeza, tudo é feito para desgostar do trabalho, eu diria mesmo para fazer odiá-lo? Com efeito, como as crianças podem amar uma coisa da qual não se lhes mostra senão o lado mais desagradável, de que se servem mesmo para as punir? Como elas poderiam amar as pessoas que estão sempre ocupadas em lhes atormentar, sob os caprichos das quais elas estão continuamente em luta? Como podem elas estimar essas pessoas, quando frequentemente vêm suas ações contrariar seus preceitos? Como podem elas se tornar justas, se se é parcial com elas? Como podem ser boas se são tratadas com crueldade? O espírito da criança, naturalmente pouco preocupado, observa todas as nuances, mesmo as mais delicadas, do caráter do seu mestre e sabe aproveitá-las com habilidade. Eu vi uma criança de dez anos empregar a bajulação com tanta arte, quanto o mais hábil cortesão. O caráter frágil de um mestre a havia feito tal. Eis como havia cumprido sua tarefa de professor, sem ter, no entanto, a mínima má intenção.
 Toda prudência se faz necessária quanto à conduta que temos diante das crianças, pois facilmente criamos nelas uma boa ou má impressão. Tudo, até o próprio tom com que lhes falamos, em certas circunstâncias, pode influenciá-las. Deve causar surpresa o fato de nelas se desenvolverem vícios dos quais se ignora a fonte? Uma criança pode aprender a doçura com homens que se deixam dominar por suas paixões? Pode adquirir sentimentos nobres com almas vis? Pode aprender a ser boa com aqueles que a maltratam? Pode se tornar polida com um homem que não o é? Pode, em uma palavra, adquirir as virtudes sociais com aquele que não as possui? Sem falar dos vícios mais palpáveis, estão aí uma série de observações minuciosas que contribuem essencialmente para a formação do moral da criança. São essas atenções que se negligencia na maioria das instituições, e outras bem maiores, as quais se pode perceber sem esforços. Mas, dir-se-á, qual é o homem bastante paciente para entrar nesses pequenos detalhes? Quem é que tem suficiente império sobre si mesmo, para atentar sobre suas pequenas falas, sobre suas mínimas ações? Quem é que sacrificará, por assim dizer, sua existência, para não se ocupar senão em ser útil a seu aluno? Esse homem seria o ser por excelência. Eu respondo: O professor, tal como eu o entendo, e não um mercenário cujo objetivo é ganhar dinheiro, e que sacrifica tudo ao seu próprio interesse. A reunião de todas essas qualidades no mesmo indivíduo é difícil, eu o confesso; mas se ele não pode aspirar à perfeição, deve tratar de, pelo menos, dela se aproximar o máximo possível. A obrigação que um professor se impõe é bem difícil de preencher, é uma obrigação sagrada quando se quer fazer honrado. 
Alguém me perguntou um dia se existe um homem, tal como o que acabo de descrever, e se esse não seria um ser quimérico para o nosso século; pois eu não conheço, dizia ele, ninguém que não seja dominado por um espírito de interesse e de egoísmo, mesmo aqueles que querem parecer filantropos. Respondi que não censurava que se tivesse em vista um pouco o seu interesse, nessa parte, porque cada um deve assegurar seus meios de existência; mas que se faça disso um ramo de comércio, uma especulação; que se sacrifique o interesse (físico, moral ou intelectual) de seus alunos ao seu próprio interesse, eis o que censuro. Existem, no entanto, homens como os que descrevi, mesmo em nosso século; existem poucos, é verdade, mas é o que os torna ainda mais estimáveis. Provavelmente terei oportunidade de voltar a falar sobre este artigo, e aí darei a conhecer alguns desse homens.”

H. L. D. RIVAIL.

NOTAS
1 Le Petit Album de la jeunesse, par Alexandre de Villiers. Paris, 1825. Traduzido do francês pela equipe do GEAK.
2. Diretor de escola, membro da Academia da indústria, da Sociedade Universal de Estatística, do Instituto Histórico, da Sociedade gramatical, da Sociedade de Métodos, Correspondente da Sociedade de Emulação de Ain, etc. etc. Rivail assumiu, em 18 de abril de 1857, o pseudônimo de Allan Kardec, por ocasião da publicação da primeira obra fundamental da Ciência Espírita, em Paris, França, intitulada O Livro dos Espíritos. 

domingo, 16 de junho de 2013

FAMÍLIA E VIDA CONJUGAL FELIZ


Namoro em Ipanema, a photo by Vinícius Lousada on Flickr.


Larissa Camacho Carvalho[1]
Vinícius Lima Lousada[2]

A construção social da família

            Ao longo dos anos em que a humanidade aperfeiçoou-se, no processo de evolução ditado pela Lei Divina do Progresso, a constituição da família foi umas das mais significativas instituições formadas pelos homens. Inicialmente, quando mulheres e homens da era paleolítica agrupavam-se em bandos garantindo sua defesa pessoal e, respeitando a Lei de Preservação, multiplicavam-se através da procriação, pouco raciocinavam sobre suas ligações com os indivíduos do grupo. A união era útil, respeitava as Leis Divinas, o instinto de sobrevivência, sem, no entanto, centrar-se nos sentimentos elevados da abnegação, da fraternidade, da caridade, do amor ao próximo.
            O desenvolvimento da inteligência no homem, aliado ao das instituições por ele formadas criaram a necessidade de instituírem-se laços diferenciados entre os indivíduos e as uniões responsáveis pela procriação ganharam um estatuto distinto. Este estatuto não foi somente direcionado para o casal que procriava, mas estendia-se a todos os descendentes deste par, reunidos todos na mesma casa matriarcal ou patriarcal, dependendo da cultura que foi sendo construída em cada sociedade.
            Esses laços diferenciados exigiam, como compromisso dos indivíduos que constituíam esses pequenos núcleos, reciprocidade em todos os aspetos da vida, lealdade, protecionismo, cuidado, defesa, deferência e como consequência do progresso moral inevitável, sentimentos mais elevados de cuidado, carinho, amor. Este último desenvolvendo-se, intensivamente, entre os sujeitos com papéis de mães e filhos, depois, também, entre pais e filhos, irmãos, o casal e assim por diante.
            No entanto, durante muito tempo assistimos essa instituição ser manipulada por indivíduos, com grande progresso intelectual, mas pouquíssimo desenvolvimento moral e espiritual, como moeda de troca, de barganha de cargos sociais ou títulos nobiliárquico por dinheiro ou riquezas torpes de todo tipo, desconsiderando, esses espíritos adoecidos e adormecidos das Leis Divinas, os sentimentos elevados já conquistados pelos homens com a contribuição dessa nobre e inspirada construção social.
            Nomeamos essa instituição de família, que antes de ser uma construção social, faz parte do plano de Deus para que as criaturas na Terra tenham um auxílio valioso em seu inevitável progresso moral.
            Na questão 775 d'O Livro dos Espíritos, Kardec – conhecendo a ignorância humana e percebendo que a família, na Terra, embora com enorme potencial edificador, passou e ainda passa por abalos que desestabilizam sua redentora missão – questiona aos benfeitores espirituais “qual seria, para a sociedade, o resultado do relaxamento dos laços de família”, ao que os espíritos respondem que seria “uma recrudescência do egoísmo”. De vital importância essa questão, pois considerando que o egoísmo é a chaga da nossa sociedade, conforme questão 913 do mesmo O Livro dos Espíritos, nossa ferida aberta enquanto grupo social, se o relaxamento dos laços de família intensificará o egoísmo na Terra isto significa, em contrapartida, que para desenvolvermos o  altruísmo, o amor, os sentimentos nobilitantes que nos conduzirão ao progresso moral anelado, temos que fortificar os laços de família na nossa sociedade.
            A resposta dos espíritos também esclarece que a instituição família é o bendito instrumento de Deus para que possamos vencer o causador de todas as desditas humanas que é o egoísmo que nutrimos e que nos afasta das bençãos Divinas ao nos alijar dos sentimentos de fraternidade, solidariedade, altruísmo e amor que somente a convivência com o próximo pode nos oferecer.
            Na família aprendemos a compartilhar com abnegação, porque nutrimos afeto por aqueles que compartilham nosso dia-a-dia, aprendemos a compreender o outro, porque conhecemos suas lutas passadas e presentes, sabemos seus sonhos de futuro, felicitamo-nos com suas conquistas e enternecemo-nos com seus incentivos para com nossas lutas. Na família aprendemos a repartir, dividir, mas também multiplicar sonhos, participar da felicidade alheia, fruir da companhia doce de quem amamos e com quem vamos intensificando esse sentimento Divino do Amor. É na família que vamos construir as bases do Amor Universal que nos lembra Jesus quando diz que um dia seremos um só rebanho e haverá um só Pastor.
            Mas a convivência em família não é algo que possamos adjetivar de fácil. Há muitos percalços, muitas dificuldades, muitos desentendimentos e muito a transformar em nós mesmos para conseguirmos manter relações saudáveis em família. Deparamo-nos, no lar, com parentes muito diferentes de nós. Se somos organizados, por vezes defrontamos um irmão desleixado que não organiza seu próprio espaço íntimo. Convivemos com uma mãe super-protetora, com um pai controlador. Mas o amor nos faz aprender a conviver bem com cada personalidade que comunga do nosso mesmo lar.
            Assim é que aprendemos a conviver, por exemplo, com um colega do escritório que é tão desorganizado quanto nosso irmão, ou com o chefe que é controlador a maneira de nosso pai e assim por diante. Enfim, todos os desafios da vida familiar são eminentemente educativos ao Espírito imortal, vocacionado ao progresso cuja a convivência na micro-sociedade que é a família contribui sobremaneira, em todas as funções que venha a ocupar o indivíduo, seja como pai, mãe, filho, tia, avô, etc. Todas essas funções na unidade familiar trazem consigo aprendizagens muito significativas ao nosso amadurecimento espiritual e nos cabe vivê-las com sabedoria, ou seja, aproveitando cada lição que tenhamos a oportunidade de vivenciar
            O Amor em Família engendra o Amor Universal. O Amor em Família vai aniquilando a carga egoística da nossa sociedade. O Amor em Família contribui, poderosamente, para o progresso individual e para o progresso de toda a humanidade. Assim é que necessitamos empenharmo-nos em defender a instituição familiar nos tempos que se apresentam ao nosso trabalho, pois que se ela configura-se construída socialmente, com certeza o plano inspirador pertence ao Pai Maior que pede nosso auxílio para protegê-la, santificá-la e concretizar seu objetivo superior: a instauração do Amor Universal entre os Homens.

Vida conjugal

            Lembra-nos o Benfeitor Espiritual Camilo[3] que todos trazemos necessidades educativas para esse mundo e carecemos, no campo das vivências afetivas, de umacomplementação psíquica e emocional que nos impulsiona na busca do encontro de uma alma cuja afinidade espiritual favoreça essa permuta de energias e nos preencha essa lacuna psíquica. Não se trata do mito das “metades eternas” desmitificado por Allan Kardec sem equívoco e, nem tampouco, da tese romântica das almas gêmeas.
            Simplesmente, somos seres transcendentes portadores de uma porção de aprendizados indispensáveis ao nosso paulatino progresso espiritual. Na multidão de Espíritos reencarnados na Terra, são vários os que são portadores de uma configuração de aprendizados comuns que lhes são oportunos, bem como, com uma certa identidade no que se refere à trajetória espiritual e desenvolvimento moral e intelectual, nas suas mais diversas gradações e pelas leis da sintonia, nos encontramos nos caminhos terrestres e, a partir do sentimento de simpatia recíproca desperta-se à comunhão afetiva, ou ainda, pela afinidade dos próprios limites espirituais, vamos ver uniões nascerem entre seres que se fazem instrumento de progresso doloroso ou tropeço, um do outro, em simbioses psíquicas perturbadoras.
            Noutros casos, que não podemos ignorar, percebemos almas irmanadas nos propósitos de renovação e amor reencontrarem-se na Terra, tendo em vista a realização dos ideais enobrecidos no campo do amor, do casamento e da família, e esses casos não são tão raros como, de forma pessimista, muita gente imagina. Esses realizam muito bem o que recomenda o Espírito Bernard Palissy, conforme a anotação kardeciana em a Revista Espírita: “Uni-vos, pois, não apenas pelo amor, mas para o bem que podeis fazer a dois.”[4]
            Cabe ao casal, nesse caso, cumprir com dedicação o programa reencarnatório estabelecido na vida espírita, antes do renascimento, junto de seus Guias Espirituais, objetivando a concretização da tarefa delineada para a sua espiritualização e para o seu contributo, por menor que se faça, ao progresso da família humana.
            Tendo em vista orientar os cônjuges para o êxito da vida conjugal, ao analisar os ângulos espirituais da família, o Espírito Camilo declara que  “O essencial que os indivíduos que se lançam na formação de uma nova família, assumissem compromisso de com o conhecimento de si mesmos.” [5]
            O conhecimento de si mesmo que cada indivíduo deve cultivar, para que jamais transfira ao outro a responsabilidade de suas andanças e o respeito ao projeto de auto-realização do outro, a fim de que o casamento não se institua numa relação asfixiante da outra alma ou numa masmorra de desamor.
            O autoconhecimento é recurso sobejamente conhecido pelos espiritistas, entretanto, para que atenda o seu desiderato feliz é fundamental que o apliquemos cotidianamente, tal como recomenda Santo Agostinho em O Livro dos Espírito, fazendo um balanço problematizador de nosso cotidiano, verificando as aprendizagens conquistadas e as experiências equivocadas que merecem correção de rumo, em função de querermos jornadear conscientemente num rumo crescente para Deus.
            Quando não exercitamos o autoconhecimento, podemos deixar-nos subjugar pelo ego e seus mecanismos de fuga. Segundo Novaes[6] o ego é “a representação do Espírito no mundo externo. Ele é, de um lado, a síntese momentânea da personalidade integral, do outro, uma função que permite a ligação da consciência com os conteúdos conscientes.” Enfim, no delineamento da psique elaborado por Jung, o ego tem um lugar central no consciente, nada obstante, a sua incompletude ante o ser integral, ocupa-se da questão da manutenção da identidade do indivíduo, de sua personalidade atual e de mediação entre o campo da consciência e inconsciente, devendo obedecer a regulação do eu profundo.
            Entre os mecanismos de fuga do ego, o eminente psiquiatra Alírio de Cerqueira Filho, destaca o de projeção. Nesse caso, é comum que o indivíduo ainda não identificado mais profundamente consigo mesmo passe a querer responsabilizar os outros em relação aos seus insucessos e frustrações. Nesse caso, diz-nos que “A única forma de se libertar da projeção é interromper esse mecanismo de transferência, aceitando os seus defeitos e responsabilizando-se pelos seus erros e acertos e, com isso, tornar-se uma pessoa melhor.”[7]
            Vejamos que para a saúde espiritual da relação conjugal, tanto quanto, para a dos cônjuges, como individualidades extracorpóreas conectados ao corpo físico pelos mecanismos da reencarnação e vocacionados à plenitude, é indispensável o exercício continuado do autoconhecimento para que, superando-se os ditames do ego infantil, a autorealização promova o bem-estar e o autoamor que deságua no amor ao outro, com serenidade e contentamento, na convivência conjugal.
            O casamento se fundamenta no amor dos seres que se unem que, para ser amor, não pode ser edificado na anulação da identidade do outro e nem na perseguição egotista de uma felicidade aparente, calcada fruição de conquistas individualistas sem consideração para com a partilha da existência com o outro. Precisamos encontrar convergência nos projetos pessoais e parceria na edificação positiva do lar cujos pilares são os Espíritos que o formam ligados pelo mais genuíno amor.
           

O amor no lar, novamente

            A relação conjugal estabelecida no autoconhecimento gera o respeito profundo ao outro que se estende, quando chegarem, aos filhos. É na exemplificação do entendimento dos próprios limites que alguém consegue desenvolver a indulgência com as alheias imperfeições e no autoperdão que aprendemos a arte de perdoar nossos seres queridos.
            De forma equilibrada, quem ama a si mesmo, que não é a mesma coisa que egolatria, aprende a amar o outro e o seu livre-arbítrio, sem aquele ímpeto de domínio da vontade alheia, comum a Espíritos de mentalidade estreita e apóia, sem medo, os projetos edificantes elegidos pela alma com a qual está a partilhar essa vida.
            Na lealdade, probidade e consciência plena das responsabilidades sedimenta-se o amor familiar que irá acolher seus hóspedes, os filhos de Deus que temporariamente recebe por rebentos seus cuja missão é fazê-los exitosos sobre si mesmos, ante as suas programáticas espirituais. Adentrando o lar o amor ilumina a todos, instituindo um clima de respeito profundo, boa vontade e presença positiva nas lutas comuns.
            O amor em casa, tal como o preconizado por Jesus de Nazaré, é o que dá rumo seguro à família como educandário sublime cujo altruísmo é a lição fundamental. O amor é o caminho do êxito da instituição familiar, jamais ultrapassada, constituindo-se, inclusive, na terapêutica mais excelente para a solução de intrincados conflitos, oriundos da incompreensão de hoje ou dos desenganos morais perpetrados no passado e condicionante de nossas ações na atualidade, pedindo a educação pessoal para o bem de todos os partícipes do campo doméstico.

Para pensar:

            “A união e a afeição que existem entre pessoas parentes são um índice da simpatia anterior que as aproximou. Daí vem que, falando-se de alguém cujo caráter, gostos e pendores nenhuma semelhança apresentam com os dos seus parentes mais próximos, se costuma dizer que ela não é da família. Dizendo-se isso, enuncia-se uma verdade mais profunda do que se supõe. Deus permite que, nas famílias, ocorram essas encarnações de Espíritos antipáticos ou estranhos, com o duplo objetivo de servir de prova para uns e, para outros, de meio de progresso.”[8]



[1] Historiadora, Doutora em Educação. E-mail: camachocarvalho@yahoo.com.br.
[2] Professor, Doutor em Educação. E-mail: vlousada@gmail.com.
[3] TEIXEIRA, J. Raul. Desafios da Vida Familiar. Pelo Espírito Camilo. 2.ed. Niterói, RJ: Fráter Livros Espíritas, 2003, p. 46.
[4] KARDEC, Allan. Revista Espírita: jornal de estudos psicológicos. Ano Primeiro – 1858. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2004, p. 513.
[5] TEIXEIRA, J. Raul. Nos passos da vida terrestre. Pelo Espírito Camilo. Niterói, RJ: Fráter Livros Espíritas, 2005, p.
[6] NOVAES, Adenauer. Psicologia do Espírito. 2. Ed. Salvador: Fundação Lar Harmonia, 2003, p. 99.
[7] CERQUEIRA FILHO, Alírio de. Saúde espiritual. Santo André, SP: Editora Bezerra de Menezes, 2005, p. 75-76.
[8] KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. 120. Ed. Rio de Janeiro, RJ: FEB, 2002, p. 108.